A aventura de bike pela Gorges de Daluis .
É inevitável não se render aos avanços tecnológicos, contudo quando esses dão problema, seja TV, telefone, computador ou mesmo uma bike, é que constatamos o quanto estamos dependentes e sentimos falta do convencional e de contar apenas com as nossas próprias capacidades físicas e mentais.
Foi o que uma inocente pedalada de bike me mostrou.
Gorges de Daluis, uma estrada sinuosa
Desde a primeira vez que cruzei com ciclistas pela sinuosa estrada que do alto margeia uma das gargantas mais lindas da França, a Gorges de Daluis, aticei meu desejo de percorrê-la de bike, mesmo contando nos dedos as vezes que já pedalei.
Assim foi durante quase dois anos e inúmeros vai e vem pela D2202, que acompanha parte do trajeto do rio Var entre falésias e nos conduz a magníficas caminhadas e altas montanhas nos Alpes Maritimes, Sul da França.
E justamente em uma manhã de outono, céu azul, temperatura ideal, depois de uma semana chuvosa, que eu decidi colocar em prática meu desafio sobre duas rodas.
Afinal, seriam cerca de 80km, ida e volta, em uma estrada de montanha, mas em uma e-bike que, no momento do cansaço, imaginei uma grande aliada.
Marcha-ré no tempo
Aqui volto no tempo para explicar minha destreza em duas rodas.
Eu aprendi a andar quando criança e dei algumas voltas em torno de um lago .
Belas lembranças que ficam para sempre, além de uma certeza de que quem aprende a pedalar na infância não esquece jamais. Será?
Entretanto, buscando na memória a última vez que montei em uma bike, viajei em marcha-ré até a década de 80, quando tive uma ruptura da musculatura posterior da coxa em pleno treinamento para Maratona de Nova Iorque.
Para não perder o preparo físico, dei algumas pedaladas, mas sempre em locais planos como praias e Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro, Brasil.
Jamais ousei subir a floresta da Tijuca.
vontade latente desde Strasbourg
De certa forma, essa vontade de ter uma bike como meio de transporte ficou latente e reapareceu depois de morar em Strasbourg, onde era mais difícil encontrar uma vaga no estacionamento de bicicletas do que de carros.
Foi com esse know how que, quando meu companheiro de aventuras na França me perguntou se eu sabia e gostava de andar de bicicleta, o sim veio imediato sem cogitar.
Depois da minha resposta convincente, eu me vi diante de uma bike, mas elétrica e de trail para minha surpresa.
O meu sinal vermelho acendeu de imediato.
Afinal, colocar em risco minhas caminhadas e corridas não estava nos meus planos.
Vai que levo um tombo?
Nos 6.6 a recuperação não é como nos 2.0.
Portanto, jamais me animei de entrar em uma trilha e chacoalhar entre pedregulhos e buracos.
Isso definitivamente não é minha “praia”.
Estreia nas pistas de Meailles
Assim decidido, fiz minha estreia nas estradas e pistas no entorno de Meailles e meu problema com a bike veio à tona: equilibrar em duas rodas.
Sendo uma bicicleta mais robusta, eu pensei ser mais fácil.
Porém, esqueci do pequeno detalhe do seu peso de 25kg.
Posso afirmar que a primeira vez foi realmente difícil controlar praticamente metade do meu peso.
E assim, o meu saber pedalar foi colocado em cheque.
Ele observava incrédulo as minhas largadas ziguezagueando até encontrar o equilíbrio.
Dar partida em uma descida ou subida era verdadeiros suplícios que muitas vezes optei por procurar um local plano ou menos inclinado.
Sequência de desafio na Gorges de Daluis
Certamente em zona montanhosa, ainda mais na Gorges de Daluis, não tem como fugir e é sempre uma sequência de desafios.
Para sair de Meailles, que fica à 1.050 metros de altitude, existem duas opções, ou seja, duas descidas completamente íngremes e em mão dupla.
Uma, que dá acesso a estação de trem, mais longa, cheia de curvas e menos movimentada.
Outra, com uns 200 metros bem pontudo e curva bastante acentuada que beira um precipício na descida, tendo como proteção uma murada baixa e com algumas falhas.
Qualquer vacilo não tem retorno e nem tempo de dizer “au revoir”.
Resultado, esse trecho é meu pesadelo e inverto sempre o papel: sou eu que transporto a bicicleta.
Mesmo assim, algo dificílimo por conta do peso, além de ser uma cena ridícula e incompreensível.
Vou freando com os pés. Ainda bem que são apenas uns 200 metros.
Desta maneira, dei largada, sem frequência, no aprendizado de me equilibrar e pedalar uma e-bike nas estreitas e sinuosas estradas.
Até então, a mais longa distância percorrida tinha sido de 44km entre Meailles e Entrevaux.
E já me considerei apta a me aventurar.
Gorges de Daluis, uma estrada de Montanha
Voltando ao percurso Gorges de Daluis, depois de atravessar a parte crítica entre Meailles e Fugeret, tudo transcorria tranquilamente, exceto perceber, já em trânsito, que o local de transportar a bomba de encher o pneu estava vazio e o gancho para prendê-la rasgou minha calça.
O importante era que eu me sentia confiante e optei por exercitar as pernas como se estivesse em uma bike convencional inclusive nas pequenas subidas.
Enquanto isso, meu companheiro pegava distância, principalmente quando entramos na estrada da Gorges de Daluis.
A impressão que eu tinha é que ele fazia uma competição e eu, um passeio.
Ele tomava distância, parava para tirar fotos e tinha tempo de descansar as pernas enquanto me esperava.
Eu, sem parar, tentava na medida do possível apreciar um pouco o belo cenário que se descortinava diferente após cada curva.
Era um outro olhar sobre uma paisagem já conhecida.
Só não podia perder o foco e a direção, principalmente sem me deixar perturbar quando carros e motos me ultrapassavam.
Porém, atravessar túneis sem iluminação e de óculos escuros foi uma experiência cega. Eu não enxergava um palmo na minha frente.
Mas em movimento era impossível tentar tirar os óculos sem me desequilibrar e totalmente arriscado parar no meio do escuridão.
Passando o vilarejo de Daluis
Depois do vilarejo de Daluis, a subida tornou-se mais íngreme, mesmo assim eu resistia ao máximo o empurrãozinho da ajuda elétrica.
Como boa mineira, prevenida e desconfiada, eu economizava a bateria para o retorno.
Afinal, o caminho se inverteria e o trecho final até Meailles, seria de subida e justamente no momento que o corpo já estaria mais cansado.
Em compensação, na Gorges de Daluis, a maior parte seria de descida.
E foi o que me salvou.
Guillaume
Finalmente em Guillaume, metade do caminho percorrido, paramos para comer uma pizza, que decidiu marcar presença no retorno em um vai e vem de queimação na garganta.
Na saída do vilarejo, meu companheiro, que eu sentia ter um desejo contido de experimentar uma trilha, sugeriu pegarmos um atalho até a Pont de la Mariée.
Já conhecíamos a trilha. Era tranquila e plana. Aceitei.
Da Gorges de Daluis até um atalho pela Pont de la Mariée
No entanto, esqueci que havia chovido na semana anterior.
Antes de percorrer 100 metros, os pequenos obstáculos e pegadinhas como buracos cobertos de folhas e pedregulhos já me faziam arrepender de ter aceito o convite.
Controlar a bike já era difícil e pior ainda foi tentar tirar os óculos estando em movimento, antes de entrar em um pequeno túnel.
Tragédia total. Perdi o equilíbrio, meus óculos voaram para trás, coração veio na boca diante da possibilidade de também voar de bike, mas para baixo e pousar na correnteza do Var, algo em torno de 300 metros de altitude.
De novo sobre controle, suspirei aliviada e segui em frente.
Na pista haviam outros ciclistas
Próximo desafio que a Gorges de Daluis me apresentou foi , pai e filho passeando de bike.
Eu senti uma leve vergonha do meu medo e desempenho.
O pequeno fazia zigue-zague na trilha e só de ver me fez desequilibrar.
Mais à frente, para não perder o clima de aventura, uma família ocupava toda a estreita trilha, sendo que um garoto de uns três anos, corria de um lado ao outro.
Nem preciso dizer que me desestabilizou.
Antes de passar, buzinei, se posso chamar de buzina o fraco trim-trim produzido pela minha bike.
A bike resolveu aprontar
Nessas alturas, meu companheiro de pedalada já estava do outro lado da pont de la Mariée e sem entender a minha demora.
E eu, certa de já ter passado por todos os perrengues possíveis na curta trilha.
Inevitavelmente, a bike resolveu me mostrar que não.
No painel, ao invés da marcha e consumo de bateria aparecia apenas a palavra erro e um número.
Imaginei que essa tinha entrado em curto-circuito de tantos solavancos.
Depois de várias tentativas inúteis de liga e desliga o câmbio eletrônico, resolvi empurrar a bike até a ponte.
De volta na D2202, outra vez pensei que tudo voltaria ao normal.
subida sem o auxílio do motor elétrico
Era uma leve inclinação, mas que sem a assistência do motor elétrico, parecia uma subida vertiginosa.
Sem contar que o corpo não estava acostumado a esse tipo de exercício físico e ao fazer esforço duplo doía da ponta do pé até o final da parte traseira da coxa.
O assento parecia ter uma faca e os braços pediam socorro.
Meu companheiro tentou resolver a pane, mas o painel enganava.
Em princípio, aparecia que estava tudo normal, mas não passava de 20 metros e a situação se repetia.
Mesmo sem estar totalmente convicto que o problema era na parte elétrica e não na condutora da bicicleta, ele decidiu seguir em frente para pegar o carro e me resgatar pelo caminho antes de anoitecer, pois os dias já são mais curtos no outono.
Uma descida até o final da Gorges de Daluis
Não seria inteligente ficarmos os dois na escuridão da estreita estrada, sem acostamento.
O corpo de uma raposinha morta estirada no caminho dizia tudo.
Ele partiu e eu prossegui pedalando, parando, descansando e seguindo em frente até vencer a subida e túneis.
Finalmente na descida até o final da estrada da Gorges de Daluis.
Ali era a comprovação do sentido exato da expressão ” para baixo, todo santo ajuda.”
O meu corpo agradeceu, embora estivesse convencida que o designer do assento nunca tinha utilizado sua arte.
De volta na D908, rumo Meailles, outra etapa me aguardava.
E foi penoso avançar cada metro.
O que parecia plano de repente se tornava uma dissimulada subida.
Final de tarde na Gorges de Daluis
De metro em metro fui avançando, fazendo reconhecimento do caminho e sempre de olho nos carros que passavam no sentido contrário, pois constatei que estava sem Internet.
O sol começava a querer se esconder atrás das montanhas, uma bela final de tarde.
Eu já me sentia praticamente em casa, mesmo ainda faltando cerca de 13km.
Enfim, fui resgatada nas proximidades de Annot.
O cansaço era tal que o silêncio foi total no restante do trajeto.
No dia seguinte, amanheci com a sensação de ter sido atropelada por um trator.
Uma tendinite de principiante na perna.
Mas um trajeto que valeu muito a pena conhecer sobre duas rodas e uma experiência que me fez ter certeza que correndo ou caminhando sou mais eu.
Porém, resisto é não desisto da bike, agora, com mais precaução em relação às modernidades tecnológicas.
Podem me aguardar.
Até a próxima pedalada!
Oh dó da raposinha!
Sim. Muita dó. Se não bastasse os predadores naturais da vida selvagem, morrem atropeladas nas estradas que construímos em seus territórios e morrem também pelo prazer do homem em caçar.
Parabéns, vc é muito corajosa e otimista!!!
Obrigada, Verona. Acho que é mais gostar de experimentar e descobrir, enquanto posso, do que propriamente coragem.
Que sufoco meodeosdo ceu. Aff
Depois que passa é mais uma bela aventura!