Col des Moulines foi uma das últimas aventuras de 2023, entretanto mereceu com louvor seu registro para o Correr para Recomeçar.
A cada ano que passa somos surpreendidos com mudanças mais frequentes e radicais na temperatura.
Por este motivo, temos que conviver com essas piruetas do tempo que faz o termômetro oscilar e as estações se embaralharem como em um jogo de cartas que não sabemos quando e como vai terminar.
Mas as intempéries existem.
Assim sendo, como é impossível remediar, o melhor é se reprogramar.
Foi assim nossa caminhada em um dia de outono em que o inverno decidiu fazer uma aparição repentina.
Essa prévia de neve foi um convite irrecusável para montar o Mounier, 2.817 metros de altitude e uma das montanhas mais conhecidas do Parc Mercantour nos Alpes Maritimes, a qual já tive a oportunidade de alcançar seu cume em um dia de primavera
O Mounier foi a minha primeira e inesquecível acessão em quase 3.000 metros de altitude . Meu primeiro desafio nas alturas, em um terreno pedregoso, com passagem por uma estreita trilha “aereana”.
Minha primeira experiência de sentimentos antagônicos que saltam do medo ao imenso prazer proporcionado pela caminhada em montanhas.
Mesmo trajeto em estação diferente
Dessa forma, poder reviver essa emoção em outra estação e condições era um desafio irresistível.
Além disso, talvez a única chance de conhecer o trajeto coberto de neve.
No inverno, além dos dias serem mais curtos e quase impossível de percorrer longas distâncias em montanhas, muitas vezes a pista de acesso ao estacionamento do Col de l’Espaul é fechada, o que aumenta alguns quilômetros para percorrer até o início da trilha.
Tentativa que já havíamos experimentado sem sucesso de alcançar o topo.
Na manhã seguinte uma nova tentativa
Contudo, nessa manhã, apesar da meteorologia avisar que seria um dia com possibilidades de rajadas de vento de 64km/h, o céu azul estava convidativo e decidimos arriscar.
Depois de algumas horas de subida e haver percorrido mais da metade do trajeto e parte dos trechos que exigiam maior preparo físico e mental, o tempo começou a virar e a previsão se concretizar.
A essa altura, um vento forte e contra, carregado de neve, batia com força no rosto e chegava a doer.
A sensação era que eu andava em marcha ré. Minhas raquetes, mal presas na mochila, pareciam um para-quedas e colaboravam com o vento me puxando sempre para o lado contrário do que eu queria caminhar e tornando as subidas e descidas mais difíceis.
Por outro lado, já estávamos quase alcançando o topo do Mont Demant, 2.441metros de altitude , ou seja, havíamos percorrido praticamente dois terços do desnível positivo de 1.100.
Era uma tentação continuar, principalmente quando avistávamos o Mounier tão próximo.
Mas as montanhas enganam e essa proximidade é relativa. Nesse sentido, insistimos mais um pouco até decidirmos dar meia volta.
Nesse meio tempo, foi só começar o caminho de volta que o vento fez sinal de diminuir e o céu começou novamente a abrir.
Porém, impossível recomeçar. Já havíamos completado 5 horas de caminhada e enfrentando diferentes adversidades.
Seria impraticável pisar no topo do Mounier e retornar antes do pôr do sol. Esse percurso foi transferido para uma outra oportunidade.
Col des Moulines: o dia seguinte
O dia seguinte foi um daqueles que a gente sai sem grandes expectativas e se surpreende.
Para ter acesso ao Col des Moulines (1.981 metros de altitude) existem diferentes opções de trilhas e eu já havia feito uma dessas que partia de um estacionamento no local chamado Cougne, próximo do vilarejo Beuil.
Um percurso de dificuldade mediana e belo, que em alguns trechos nos surpreendeu com verdadeiras esculturas glaciais.
Decidida a descobrir novos lugares e paisagens
Dessa vez, mesmo se o destino fosse o mesmo, eu estava estimulada por descobrir novos lugares e paisagens em uma trilha que eu não conhecia.
Já passava de 9h30 quando partimos do estacionamento do Col de l’Espaul em direção ao Col des Moulines.
Ainda esquentando o corpo, eu já estava diante de um cenário de filme ou sonho chamado La Colle, um pequeno aglomerado de casas que chamam de “hameau”, rodeado de belas montanhas e uma bela vista.
Seguindo em frente, o trajeto continuava a se apresentar sem grandes dificuldades.
Nada melhor do que depois de um dia de caminhada que exigiu esforço.
Posteriormente, atravessamos uma pequena cascata, antes de chegar em uma cabana, local que demos uma parada estratégica para consultamos o mapa, pois a sinalização estava confusa.
Prosseguimos nosso trajeto à esquerda .
A partir desse ponto, a trilha em direção ao Col des Moulines ficou mais estreita, contornando montanhas.
Mesmo assim, o percurso continuava tranquilo, apesar de coberto de neve, mas sem necessidade de colocar as raquetes.
Caminhadas X peso do equipamento, o que deixar para trás?
Aliás, o que realmente me incomoda nas caminhadas é transportar os equipamentos, além da mochila.
Pouco a pouco vou reconhecendo a importância de cada um, entretanto tenho ainda meus momentos de irritação quando, em uma travessia complicada; eventualmente preciso apoiar uma das mãos na pedra ou vegetação e não sei o que fazer dos dois batons.
O mesmo acontece quando carrego durante horas o saco com as raquetes sem ter que utilizá-las.
Assim sendo, a cada caminhada, reduzo o peso da mochila. Muitas vezes além do que deveria.
Frequentemente, meu companheiro precavido fica abismado quando descobre, já em campo, que deixei algo em casa.
Por experiência, ele sabe que quando pisamos na montanha devemos ter os equipamentos necessários e estarmos preparados para enfrentar o inesperado.
Seja como for, ele não entende que caminhar com esse peso nas costas também é algo novo na minha vida e preciso de tempo para me adaptar.
Afinal, minha origem é a corrida na qual apenas é preciso carregar o peso do próprio peso.
Aos poucos, a natureza se apresenta em todas as suas faces
Um pouco à frente, deparamos com uma carcaça de carneiro enterrada na neve. Possivelmente foi ação de algum lobo que habita a região.
Ainda assim, a imagem de um animal morto me causa tristeza, mesmo sabendo fazer parte da lei da sobrevivência.
O resto da carne é sempre consumido por aves de rapina que circulam nos alpes franceses.
Em síntese, no reino animal, não existe matar sem motivo, por prazer, vaidade ou ganância.
Tudo tem algum sentido. Uma selva com regras e diferentemente da que nós, humanos, vivemos.
Nova opção de trilha
No final, a trilha tem uma subida um pouco mais íngreme, porém curta, principalmente se optar por cortar o caminho como fizemos.
Em contrapartida, no alto, a recompensa de uma bela vista de um dos ângulos do Mounier, um encontro com um caminhante e o testemunho da chegada de um jovem casal de corredores.
Por incrível que pareça, enquanto eu calculo onde meter meu passo a passo na estreita trilha, tem gente que atravessa correndo.
Depois de alguns minutos de prosa, decidimos seguir o conselho do caminhante solitário ao invés de retornar pelo mesmo lugar. Assim sendo, pegamos outra trilha que nos permitia fazer um circuito passando pela base do Mounier e retornando pelo caminho do dia anterior.
Finalmente, partimos satisfeitos de ter a oportunidade de continuar descobrindo uma nova opção de trilha.
Tentando seguir os rastros do caminhante
Uma vez que não havíamos assimilado toda a explicação do trajeto e além disso, a neve esconde as referência e uniformiza o local, procurávamos seguir o rastro deixado pelo caminhante.
Todavia, em alguns pontos, sua pegada desaparecia completamente , tornando o percurso uma gincana.
Dessa forma, nós nos norteávamos pelo Mounier. Toda vez que voltávamos a localizar as pegadas, tínhamos certeza que estávamos na direção correta.
Depois de cruzar com alguns chamois, uma espécie de cabra da montanha, começamos a subir em zigue-zague-zague uma encosta inclinada e delicada com pontos escorregadios e impossível de descobrir a trilha.
Com efeito, foram alguns minutos mais técnicos e tensos para dar mais emoção.
Paisagens místicas e deslumbrantes
Ao alcançar topo do Mont Demant, uma paisagem que me fez sentir uma astronauta pisando na lua.
Definitivamente não era delírio das alturas. Nessas horas, todo o esforço foi recompensado.
Em outras palavras, a neve no alto da montanha, promove uma atmosfera mística, uma sensação maior de solitude, de encontro com o seu eu interior, mesmo estando acompanhada.
Ficamos alguns minutos admirando a arte da natureza e registrando aquele momento.
Constantemente, o Mounier tão próximo era uma tentação, todavia a hora passou rápido e era nossa grande adversária. A partir dali, conhecíamos o caminho de volta e sabíamos que havia um longo trajeto de muita descida coberto de neve a percorrer até o estacionamento.
Depois de 7 horas de caminhada, descobertas, momentos de tirar o fôlego ou acelerar o coração, terminamos mais este trekking nos arredores de Valberg, nas montanhas do sul da França.
Até a próxima caminhada.
Se gostou, nos deixe saber. Inscreva-se no blog e deixe seu comentário.
Se quiser mais informações formações sobre o percurso, escreva-nos.
Show!!! Memórias inesquecíveis
Verdade! Cada caminhada é uma nova descoberta e aprendizado.