A escalada pelo Mont Saint-Honorat testou mais uma vez minhas habilidades aventureiras. A caminhada em montanhas, além da atividade física, é também um exercício mental, por vezes extenuante, mas muito gratificante.
São alguns minutos ou horas que imagino não ter final feliz, contudo a mistura de hormônios, entre esses a adrenalina, faz surgir um eu que hiberna por quase toda minha vida.
É um verdadeiro tabuleiro de xadrez natural em que não é só o preparo físico que conta, mas o planejamento e habilidade de saber se movimentar com precisão para vencer a partida.
Sobretudo, caminhar na montanha é resistir e desafiar o tempo. É estar acompanhada de um vazio sideral e de uma solitude monumental.
Antes de mais nada, é aprender que equilibrar-se entre o desnível positivo e negativo é fundamental e que a distância perde importância para a altitude.
É saber que o seu grande inimigo pode estar sob seus pés, além da condição meteorológica que de uma hora para outra pode mudar .
Contudo, é a imprevisibilidade da adversidade que nos despe, provoca uma ebulição de sentimentos contraditórios bem como nos coloca em um turbilhão de emoções e reflexões sobre o real sentido da nossa existência.
Dessa forma, cada vez que parto para uma caminhada nas montanhas francesas, eu nunca sei o que me aguarda. Muitas vezes o percurso traçado no mapa, e que parecia fácil, me coloca em xeque diante de imprevistos ou desvios . Eu me vejo no espelho da vida.
A cada passo em direção ao pico da montanha, eu me deparo com uma metáfora . A cada situação que parece incontornável, eu me reinvento e me redescubro mais sólida do que um dia me imaginei poder ser.
Mont Saint-Honorat
O Mont Saint-Honorat, situado nos Alpes Marítimos, no sul da França, não foge a regra. Para alguns, a trilha que conduz ao seus 2.520 metros de altitude é considerada esportiva e, para outros, difícil.
Em princípio, cada montanha tem sua própria peculiaridade ( tipo de formação rochosa, altitude, efeitos da ação do clima), encantos e desencantos e jamais saberá ,se não se propor a descobrir.
O Saint-Honorat, desnudo ou coberto de neve, durante qualquer estação, se distingue no imenso maciço du Pelat e é um convite à aventura.
Por várias vezes apenas o admirei do belvedere de Valberg, uma estação de esqui nos Alpes Marítimos. Era como se fizesse uma preparação psicológica para colocar o trekking em ação.
O acesso ao Saint-Honorat é difícil no inverno
No inverno, o seu acesso é difícil e impossível para principiantes como eu.
A partir do final de maio e durante todo o verão até o outono chegar, são os rebanhos de ovelhas e carneiros das regiões montanhosas que podem nos surpreender.
Esses são conduzidos para pastagens na altitude, enquanto os pastos nos prados mais baixos são ceifados e essa grama seca é armazenada para ser utilizada como forragem nos meses de frio.
Entretanto, onde há rebanhos pode haver patous , raça canina utilizada como braço direito de quatro patas dos pastores, que atua como guardiã contra ataques, principalmente de lobos que circulam na região.
Até o momento, eu nunca estive em uma situação olho no olho ou próxima de um patou. Porém já escutei histórias suficientes para ter uma certa apreensão sobre um possível encontro com esses cães de guarda, apesar de fazer parte da turma que gosta da espécie canina.
Tem pastor que diz que seu cão não ataca humanos, mas é pagar para ver e as ocorrências mostram o contrário. Em toda trilha que passa por local onde há cabana de pastor existem placas de orientação.
Explorando o Saint-Honorat no fim do verão
Ainda assim, a vontade de explorar o Saint-Honorat falou mais alto e decidimos nos aventurar quando o verão se despedia e o outono já anunciava a sua chegada.
Para caminhar até o seu topo, existem diferentes locais de partida e trajetos.
Nossa opção foi do local chamado La Pinée. Para ter acesso ao percurso, foi preciso atravessar a parte antiga de Daluis e continuar até o fim de uma pequena e estreita estrada que não é bem sinalizada e nos obrigou a pedir informação.
Todavia, encontrar uma viva alma pelas ruas é sempre uma tarefa difícil nessas pequenas cidades francesas. De tal modo que ter conseguido cruzar com um morador foi sorte e, assim, pudemos chegar no nosso ponto de partida.
Eram 9h55 quando entramos na trilha indicada pela sinalização (52a), e a 1.430 metros de altitude.
O começo da trilha, uma subida discreta de terra batida, alternada com trechos com cascalhos, ainda escondia o que nos aguardava.
Aproveitamos para apreciar a beleza da paisagem e deixar o ar puro de montanha faxinar nosso interior.
Entrando na área de pastagens
Um pouco adiante, uma placa presa em uma árvore advertia que entrávamos em território sob vigilância desses cães de guarda, ou seja, área de pastagem, muitas particulares, que seus proprietários permitem a passagem de caminhantes que devem seguir algumas precauções como evitar de fazer barulho e se acompanhado de um cachorro, mantê-lo preso na coleira e próximo .
Nesse sentido, no meu “kit alerta”, eu incluo os ouvidos antenados como importante detector. Por certo, o som de sinetas penduradas no pescoço dos animais que podem nos indicar a presença do rebanho e até mesmo dar uma possível ideia da distância e localização.
Logo após passarmos em frente a cabana de pastor, eu começava a ter intuição de que seria um dia de fortes emoções e a certeza de que começávamos uma outra etapa da caminhada.
Tudo estava silencioso. Sinal de que haviam partido para o alto das montanhas. Mas onde estariam? Essa imprevisibilidade tornava o percurso uma verdadeira incógnita.
Seja como for, caminhávamos sabendo que a qualquer momento seríamos surpreendidos, porém sem saber quando e como .
Inegavelmente, a adrenalina ainda sonolenta já se preparava para sua hora de entrar em ação. E, de fato, foram apenas mais alguns poucos quilômetros de passadas com mente e coração em ritmo normal.
A trilha continuava com uma subida estreita em zigue-zague em direção à Corpatas.
Barulho de sinos indica proximidade dos rebanhos
Mas logo na sua base, começamos a escutar o barulho dos sinos e foi só olhar para o alto e ver o rebanho se dirigindo para pegar a mesma trilha em nossa direção. De tal forma que no meio de tantas ovelhas e carneiros era difícil distinguir os cães.
O pânico deu indícios de gostaria de vir à tona e tomar o espaço do autocontrole. Tínhamos três alternativas: dar meia volta e abortar a caminhada, seguir em frente ao estilo teste de São Tomé ou pegar um caminho alternativo.
Escolhemos a terceira opção e a partir daquele momento, a tranquila caminhada foi se transformado pouco a pouco em momentos de verdadeiro estresse.
Subindo a montanha pela vertente
Por consequência, começamos a subir a montanha literalmente pela vertente, sem caminho definido e com um solo de pedras instáveis e deslizantes.
Cada passo que dava, eu olhava para trás, supervisionando a distância entre nós e o rebanho.
Nessas horas a imaginação se sente em liberdade para criar falsas imagens. Eu tentava disfarçar o medo, mas minha boca me delatava e sem permissão repetia a mesma frase: eles estão vindo na nossa direção.
São falsas proximidades que a montanha permite criar para nos confundir, mas a dificuldade de suplantar aquele trajeto era real, assim como o desejo de forçar meu companheiro a parar para checar e me permitir diminuir nossa distância.
Eu não queria ser a primeira, e nem tão pouco a última da fila, situação complexa quando só existem essas duas opções.
Em uma das vezes que olhei para trás, pude ver o pastor parado, mantendo as mãos sobre os olhos, em um gesto que só mais tarde pude saber ser de incredulidade, tentando entender o que fazíamos naquele local.
Ficar para trás ou seguir na frente, uma questão difícil
Nesses momentos de tensão o meu pensamento havia entrado em ebulição. Queria encontrar uma razão para esse prazer viciante que justificasse passar por aquela experiência.
Eu caminhava como podia e a situação exigia. Por vezes só o bâton não era suficiente para me dar segurança e o recurso “quatro patas” entrava em ação.
Em alguns momentos eu tentava me apoiar na vegetação para avançar na subida sem escorregar, mas maioria tinha espinhos finos que penetravam na pele. Não havia tempo para fazer a triagem.
Me sentia uma versão Cristo crucificada na vertente. Mãos e braços espetados, mas a adrenalina funcionava como bom anestésico.
Eu tentava seguir a risca as instruções do experiente caminhante de montanhas. Contudo, minha categoria de debutante freava qualquer tentativa do que considerava ousar.
Ainda assim, o francês estava sempre a querer me mostrar algo belo no céu ou trajeto. Eu não queria me desconcentrar. Procurava manter meu olhar focado onde iria pisar.
Parada estratégica para um lanche e descanso
No entanto, ele não conseguia entender a minha dificuldade de caminhar lateralmente nas pedras deslizantes.
Eu respondia que não tinha DNA de cabra. Sem dúvida, era o sinal de que o humor também já estava no final do estoque e o estado de ânimo alterado à medida que o percurso ficava cada vez mais difícil e o cansaço começava a me abalar.
Eu não sei precisar a extensão desse trecho. Quanto mais difícil o obstáculo, mais o tempo parece engatinhar lentamente.
Finalmente chegamos a um local que, apesar de mais alto e com a sensação do vazio mais perto, o terreno tinha terra e vegetação entre pedras e um pseudo lugar para sentar, fazer um lanche e deixar o corpo se reencontrar.
O voo solitário do vultur
No céu azul, um vultur ( condor dos Alpes, parente dos urubus brasileiros) parecia fazer um espetáculo a parte, sobrevoando a montanha em busca da sua refeição.
Ao mesmo tempo, uma pequena borboleta azul pousava na minha mão. Ali ficou um bom tempo, lutando contra o vento forte nas suas frágeis asas.
Com essa lição de superação, parti para mais uma etapa da caminhada, mas minha coragem foi até estar diante da última parte à transpor para alcançar o cume das Corpatas.
A única alternativa viável era subir por uma das depressões existentes, produzidas pela erosão e por onde escoa a água da encosta, que naquele momento estava seca.
Sem opção, seguimos pela “estreita cascatinha” ou escada de pedras irregulares, por vezes mais alta do que minhas pernas alcançavam naquela inclinação.
O momento exigia concentração e foi impossível registrar fotos.
O meu companheiro montava na frente, com uma mochila pesada nas costas, e tentando pisar leve para que nenhuma pedra rolasse.
Eu estava em baixo, torcendo para ele não perder o equilíbrio. Depois com sua ajuda, era a minha vez de montar.
Assim fomos. Cada pedra ultrapassada eu comemorava calada, chorava sem lágrima e prometia que seria a última caminhada em montanhas, aumentando minha lista de promessas não cumpridas.
O prazer dessa caminhada é libertador.
Ao pisar no topo, a sensação era de ter entrado viva no paraíso. Um local plano e largo para pisar. Eu precisei me beliscar. Uma vista especial da cadeia de montanhas . Um presente da natureza.
O ponto mais alto do saint-Honorat
Apesar do Saint-Honorat parecer próximo de onde já estávamos, o trajeto ainda seria longo e havíamos perdido muito tempo no caminho alternativo.
Dessa forma, daquele ponto poderíamos optar entre retornar pela trilha tradicional ou seguir em frente .
Diante do estresse que passamos, a pergunta me foi feita. De fato, eu senti que ele também estava cansado e não questionaria se a minha resposta fosse positiva ao retorno.
Nesse sentido, o cansaço emocional é mais destruidor e difícil de administrar.
Voltar de onde estávamos ou continuar?
Surpreendentemente eu me sentia renovada e não sabia se teria outra oportunidade de conhecer o Saint-Honorat.
Não queria sentir o gosto do não terminado, do objetivo não alcançado depois de tanto esforço. Uma vez que o pior já havia superado. Agora era pernas para prosseguir. E isso eu sabia que tinha.
A experiência de maratonas havia me ensinado a persistir e resistir.
Foi o que fizemos entre subidas e descidas em terreno pedregoso, porém não aeriano, como chamam essas partes inclinadas de montanhas, que o vazio está ao seu lado e é desaconselhável às pessoas que sofram de vertigem.
Percorremos durante mais uma longa e cansativa hora antes de pegar o estreito caminho traçado entre pedras que conduzia até o ponto mais alto do Saint-Honorat .
Sem dúvida, paramos alguns passos antes de chegar ao cume, sentamos para apreciar a cadeia de montanhas do Mercantour, descansar as pernas e preparar a mente para a descida de retorno ao ponto de partida, no entanto, pela trilha existente.
No retorno, alguns erros de percurso para não perder o clima de aventura.
Por certo, o sol já se despedia e não queríamos atravessar a trilha na escuridão.
Na corrida contra o tempo que galopava, o corpo fatigado trotava em uma descida interminável até a cabana do pastor.
Encontrando o pastor e seu rebanho
A essa altura, estávamos diante do rebanho e sem chance de alternativas de desvio de percurso. Entregamos ao destino e continuamos nos aproximando, quando vimos o pastor nos aguardar.
Ao contrário da nossa expectativa, fomos recebidos amistosamente pelos seus dois cães de companhia.
Finalmente, em alguns minutos de prosa, o pastor contou que ficou impressionado quando nos viu subindo fora da trilha.
Nesse meio tempo, o patou, mesmo sendo chamado, não apareceu. Talvez estivesse na sua hora de pausa, antes de assumir o seu segundo turno de trabalho durante a madrugada.
Em conclusão, foram cerca de 9 horas de caminhada, tensão e emoção. Por outro lado, o Saint-Honorat certamente me transformou ao longo de seu trajeto.
Se gosta de montanhas, de se sentir livre e bela paisagem, o Mont Saint-Honorat é uma opção no sul da França.
É uma linda e possível caminhada, que recomendo ser feita pela trilha existente, sem inventar caminhos alternativos.
E quanto aos patous? O risco do encontro existe, mas ainda não foi desta vez que eu poderei opinar.
Até à próxima!
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foi seu melhor texto disparado
Obrigada! Os comentários são sempre um estímulo para dividir com vocês meus percursos e aventuras nas montanhas francesas e da vida.
Meu Deus! Só de ler fiquei cansada e apavorada. Parabéns pela resistência e coragem! Caminhada difícil.
Esses momentos de tensão fazem parte de uma boa caminhada em montanhas. Mas posso te garantir que não há melhor exercício para fortalecer o corpo e a mente.