Texto: Virginia Prado
Fotos: Alan Lesimple/Virginia Prado
Seguir por um trajeto já conhecido ou aceitar o desafio de descobrir o que um novo percurso tem para mostrar? Uma decisão a tomar nos caminhos de “randonée” e de vida.
Na França, as trilhas tradicionais são indicadas nos mapas de cada região e a maioria sinalizadas ao longo do trajeto, mas nem sempre de forma ideal. No inverno, principalmente nas montanhas cobertas de neve, torna-se mais difícil localizá-las, o que faz o percurso parecer um imenso quebra-cabeça.
Sentier Botanique de Peyresq
Quando pegamos a pequena e estreita estrada em direção a Peyresq, o sol ainda estava indeciso se deveria despertar e meu corpo resistia em deixar o calor das cobertas. No inverno europeu, é difícil tomar essa decisão, quando está a mais de 1.000 metros de altitude e com uma temperatura abaixo de zero. Só mesmo o imenso desejo de não perder a oportunidade de descobrir novos lugares para vencer a batalha contra o corpo preguiçoso e a mente adormecida.
Na véspera, eu havia procurado na Internet trilhas que dariam acesso às montanhas que havíamos avistado quando chegamos no Plan du Rieu.
Uma das opções relatava uma caminhada partindo por uma trilha botânica. O texto que descrevia o percurso continha lindas fotos de flores. Não fazia referência ao grau de dificuldade da caminhada, pouco descrevia o passo a passo do trajeto e foi o que levei como referência na minha ingenuidade e ignorância de debutante em montanhas.
A placa inicial alertando a possibilidade de patou, raça de cão utilizada para guarda de rebanhos, não era uma preocupação no momento, pois os animais não são conduzidos para o alto das montanhas neste período de frio intenso.
Assim, entrei na trilha totalmente despreocupada, afinal o nome “sentier botanique” não me sugeria dificuldades. Mas a tranquilidade mental durou pouco. Já nas primeiras passadas pude constatar que não seria um percurso fácil.
À medida em que avançávamos, a trilha tornava-se mais estreita e mais alta, onde podíamos encontrar diversas placas de sinalização identificando a vista panorâmica de cada local, que eu só conseguia apreciar com parcimônia, pois tinha receio de desequilibrar.
Tirar o celular ou a câmera fotográfica dos bolsos era uma pré-tarefa complexa, pois necessitava tirar as luvas e arranjar um lugar adequado para os batons. Só de pensar , muitos cliques deixei de dar.
Para me inspirar a prosseguir e acalmar os pés trepidantes, eu procura desviar o pensamento para as pequenas flores que resistem ao frio, vento e neve em montanhas com altitudes de mais de 2.000 mil metros.
E era isso que eu tentava fazer, mas o piso não ajudava. Na sua maior parte de terra e muito cascalho era uma combinação perfeita para deslizar e o caminho pedia manter o alerta vermelho ligado em permanência, afinal um passo em falso, contornando uma falésia, é queda livre sem tempo de dizer “au revoir”.
Quando eu desviava meu olhar do chão para localizar meu companheiro à frente, eu não acreditava e desejava intensamente 1/12 da sua descontração. Ele esbanjava tranquilidade. Enquanto eu pisava em ovos, ele parecia flutuar. Eu tateava cada centímetro do chão para escolher o local mais confiável para colocar os batons e principalmente meus pés. Ele passava saltitante. Eu nessas horas lamentava não ser uma cabra.
A todo momento, ele me mostrava a beleza da paisagem, como se eu pudesse me desconcentrar para apreciar. Por vezes, dava aquela passada rápida de olhar sem dar tempo do cérebro registrar.
Enquanto eu me movimentava tropegamente entre os pedregulhos , ele parecia uma lagartixa, que se move sem percebermos, e aparecia em outro ponto mais distante. Mais eu já sabia dessa sua peculiaridade. Eu conheci seu DNA de bouquetin, uma espécie de cabra dos Alpes, quando fizemos Serra Selada, uma montanha nas proximidades de Visconde de Mauá, no estado do Rio de Janeiro.
Um currículo de anos de experiência em montanhas que certamente não é o meu caso.
Portanto, em se tratando daquele percurso entre falésias, eu precisava me concentrar para me equilibrar. O que estava abaixo dos meus pés ou acima da cabeça, eu preferia nem olhar.
Em muitos momentos que ele apontava algo e me falava “regarde!”, dependendo do ângulo de onde estava , eu só conseguia pensar em uma frase do meu pai quando não podia ou queria ver: eu acredito.
A cada falésia que finalizávamos, o coração desacelerava e eu podia respirar aliviada. Eu pensava que o pior já havia passado e que de fato começava a caminhada. Mas minha felicidade e calmaria tinha prazo curto. A trilha continuava a nos surpreender e apresentar desafios.
Subíamos, descíamos, contornávamos e lá estávamos diante de mais um precipício aos nossos pés e um caminho tão estreito que eu pensava ser impossível atravessar. Só mesmo pensar ter que retornar tudo que já havíamos superado servia de incentivo para seguir em frente.
Até os meus olhos tiveram que dar hora extra. Durante todo o tempo, eu precisava manter meu olhar em dois focos: um mais distante para saber quais as escolhas do meu companheiro e outro mais próximo para decidir o meu passo a passo.
Quando o trecho era extremamente estreito, haviam cordas de apoio. Nessa hora tudo se complicava. Os batons nitidamente sobravam. A minha vontade era dispensá-los, mas logo retomava a razão, ciente de sua utilidade em uma próxima etapa. Assim, tentava arrumar um jeito de acomodá-los em uma única mão para que a outra pudesse, como nunca, permanecer grudada na corda. Eram trechos de curta distância, mas que pareciam sem fim.
Harmonizar essa complexidade de ações, controlando o medo e não deixando o pânico se instalar, era uma tarefa fatigante para um cérebro que só queria se oxigenar.
Minha mente se esforçava em me incentivar, enquanto meus pés aproveitam a fragilidade do momento para tomar o controle do meu corpo e não querer sair do mesmo lugar.
Nessas horas eu sempre escutava “ça va bien? “, que eu respondia “oui, ça va!”, quase que automaticamente para não perder o foco e tentando disfarçar a cara que insistia em mostrar o contrário.
Meu companheiro, graduado em destreza nas montanhas, apenas observava-me. Não sei se não compreendendo o que se passava ou querendo conhecer meus limites.
O que estou fazendo aqui?! Era a única indagação que o meu cérebro conseguia processar nos momentos tensos. Um filme da minha vida passava em time-lapse na minha cabeça. Era o sinal verde para a adrenalina entrar em ação.
O meu companheiro, à distância, me aguardava. Ele sabia que estava em teste de resistência e perseverança.
Mas me manter no mesmo lugar não era a boa opção, pois as horas corriam.
É justamente nessas situações de extrema dificuldade que a adrenalina vem em socorro e provoca uma sensação de capacidade, até então desconhecida, para vencer os obstáculos. É o “barato” natural e prazeroso que vicia e faz querer continuar a subir montanhas e estar diante de um outro eu. É o fortificante para superar as adversidades da vida.
Não existem palavras para descrever a sensação de vencer o risco, o trajeto traiçoeiro e a sua covardia.
Conseguir ultrapassar cada um dos trechos difíceis proporcionava uma amnésia momentânea sobre todos os obstáculos que já havíamos superado. Mas era surgir o próximo que o corpo se arrepiava. Um ciclo que parecia sem fim.
Em um certo momento, a sinalização do ” sentier botanique” desapareceu completamente. Foi quando nos demos conta que havíamos esquecido o mapa do local.
Em uma checagem 360⁰ graus, todas as direções levavam a nenhum lugar. Sem trilhas à vista e com as horas passando rapidamente, ele, que estava no controle da situação, decidiu que caminharíamos no curso de um rio seco. Mas bastou caminhar alguns metros para percebermos que acabaríamos no salto de uma cachoeira.
Demos meia volta e partimos em direção ao lado contrário das falésias em que estávamos. A caminhada parecia mais tranquila. Seguíamos aparentemente uma pequena trilha utilizada pelos pastores e seus rebanhos, arborizada e piso de terra sem muitos cascalhos.
A subida parecia estar sob controle até começar a se tornar mais íngreme. Orientada pelo meu guia, eu me agarrava na vegetação verde presa ao solo para me sentir mais segura ao subir lateralmente a montanha. A logística desse ato era complicada com os bastões e a cada passada a vegetação foi se tornando mais seca, até que começou a se desprender do solo quando eu me apoiava.
Ao mesmo tempo, meus pés começaram a deslizar na mistura de terra com pinhas espalhadas pelo chão.
Esse foi o momento que achei que seria reprovada pelas montanhas. Meu companheiro , que me observava, começou a me orientar.
Seria preciso descer uma parte para subir pelo trajeto que ele havia feito. Paralisei total.
Agarrei em uma árvore para criar coragem e roubar sua energia. Foram alguns segundos que me pareceram uma vida. O coração parecia ter se entalado de vez na garganta depois de ter acelerado para me acompanhar na subida. Enfim, no alto e mais alguns minutos para descobrir que subimos em vão a lugar algum. Ter que retornar pelo mesmo trecho, seria exigir demais para uma principiante, mas era o que deveríamos fazer. Respirei fundo e partimos, cruzando a montanha na diagonal.
De volta na parte baixa e sem avistar qualquer sinalização ou trilha, decidimos seguir as pegadas de animais. Uma tentativa com limite de hora para identificarmos a trilha do Plan du Rieu para podermos retornar a Peyresq. Mentalmente eu pedia ajuda para todos os santos existentes ou não. Eu implorava ao sol para estender sua jornada e não deixar a escuridão da noite se apoderar do dia e complicar nossa situação.
Cada vez que meu guia calculava o tempo que precisaríamos para retornar Peyresq e, portanto, o prazo para encontrar uma opção sem precisar utilizar o mesmo trajeto de vinda, eu sentia um soco na boca do estômago.
E foi depois de subir mais uma montanha, e como uma miragem no deserto, nos vimos diante da montanha destino no entorno do Grand Coyer.
Nesse momento me senti em casa, mesmo que ainda tivéssemos que percorrer uma grande distância.
Meu companheiro começava a ficar preocupado com as horas. Ainda era preciso encontrar uma maneira de atravessar para o lado contrário de onde estávamos, mas tudo que enxergávamos era neve. Foi um longo caminho até localizarmos a sinalização em direção à Peyresq. Faltavam mais 6km em uma trilha com parte rochosa coberta de neve e alguns trechos delicados, mas nada comparável ao que já havíamos feito. Precisávamos apenas ter cuidado nesta corrida contra o relógio.
O sol parece ter compreendido que eu já havia tido um dia em uma verdadeira “montanha russa” e decidiu adiar o seu pôr para nos esperar.
Entramos em Peyresq em tempo de assistir o espetáculo da sua despedida e agradecê-lo antes de desaparecer atrás das montanhas do Colle de Saint Michel.
Ao todo foram mais de 9 horas de caminhada e muito aprendizado nas montanhas francesas dos Alpes Alto Provença.
Nem precisa dizer que quando o sono bateu, dormi como pedra.
Só depois de fazer uma outra caminhada do outro lado das falésias, que me dei conta do que atravessamos. Mas esse percurso fica para o próximo post. Até lá.
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Parabéns Prima! Você Escreve e Descreve muito bem ! 🍀
Obrigada! Tenho sangue mineiro e gosto de contar casos.
Da pra ver que seu coracao esta em plena forma. Eu teria sentado no chao e chorado na primeira curva. E dado re obvio…
Verdade! Não posso reclamar do meu coração. Alguma dose de adrenalina faz bem. Experimente!
Parabéns pela sua coragem e por esse belo relato e fotos bem interessantes.
Da próxima vez é melhor se informar melhor sobre as dificuldades da caminhada!!!
Até a próxima.
Verena
Obrigada, Verena! A surpresa do percurso é o que mais me encanta.
👏🏼👏🏼👏🏼
Obrigada!