O que muda na corrida do ano novo pessoal

Sanary sur Mer vista da plage de Bonnegrâce em Six Fours les Plages

 

A mente quer e o corpo pede, mas o frio lá fora é de sensação de 2º graus e o quentinho da sua cama, que na noite anterior custou muito a esquentar, é um convite para ficar. O que fazer?

Foi nessa condição que eu decidi realizar o meu primeiro treino de corrida, depois de mudar de faixa etária. A virada de ano pessoal, mesmo não querendo, não tem como evitar e é impossível não pensar: o que vai mudar?

Lembrei-me da minha neta, quando participou pela primeira vez de um Réveillon.  Ela acompanhou animada toda a preparação da família e, quando o novo ano chegou, procurou, procurou e, em seguida, me perguntou: vovó cadê o Ano Novo? Foi pegando carona na pergunta que acordei sessentona. E, depois, encontrei resposta lembrando de que o essencial é invisível aos olhos, do livro O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry. Afinal, o tempo não espera e o melhor é calçar o tênis e largar no percurso dos 60, que já estava a me aguardar para na maratona da vida continuar.

Até agora não sei se foi a paixão por correr, a vontade de me testar ou o peso na consciência de vários dias de comilança sem correr.

Pode ser uma desculpa sem fundamento, mas, neste frio, a sensação que tenho é que acabo de comer e me sinto um saco vazio. E, sem ter coragem de enfrentar a temperatura na rua, o saco só enche. Pequeno detalhe como trocar a roupa de manhã cedo, que normalmente é feito no automático, torna-se um pesadelo para quem não tem qualquer intimidade com o frio de verdade. Tem gente que sente mais. Tem gente que sente menos. Tem gente que acaba se habituando. Eu acho que estou nessa fase de transição.

Depois de uma semana de indecisão, e a temperatura despencando em ritmo acelerado, finalmente resolvi criar coragem. O primeiro contato ao ar livre é um verdadeiro choque. Quem ainda pensa estar sonolenta acorda com total energia. Correr é a solução. Nesse momento, não só para esquentar, mas também para não se arrepender e voltar.

A cama quentinha é a imagem que me acompanha no início da corrida, enquanto o corpo se esforça para esquentar. O rosto parece gostar e acreditar que está em pleno tratamento de rejuvenescimento facial. As pernas dão a impressão de mais rígidas e fortes. Os pés continuam por um longo tempo em dúvida se vale a pena entrar no esforço coletivo do corpo. Mas as mãos são sempre resistentes. Eu diria que é a parte mais rebelde e que insiste em lembrar do quentinho do lar.

Temperatua baixas em Sanary sur mer
As temperaturas estão cada vez mais baixas em Sanary sur Mer

Tento trocar o canal do pensamento, mas o frio disfarçado em outro assunto vem de novo a me atormentar. Lembro-me de um texto que dizia ser no inverno que as pessoas mais sentem falta de um par. É provável. Nada melhor do que o calor humano para esquentar em qualquer lugar. Enquanto a cabeça divaga, a quilometragem avança, lentamente.

Que tal mudar de assunto? E vamos lá. Outro pensamento toma o lugar.  Na verdade, acredito que estavam armazenados, congelados e enfileirados, esperando o momento propício para comigo estar.

A passagem de década mexe com todos, embora mais com uns do que com outros. Mexe com ambos os sexos. Com os homens, talvez, de forma camuflada e com as mulheres, devassada. Mexe mais com algumas do que com outras. Enfim, na corrida da idade é preciso encarar e não se amedrontar diante da invisibilidade que quer tomar o seu lugar.

Em pleno século XXI é difícil acreditar que ainda exista um olhar distorcido e um preconceito ancestral, a partir do momento que não se pode mais gerar, que o corpo começa a se modificar, o cabelo esbranquiçar e as rugas da trajetória da vida a querer se mostrar. E, é mais difícil aceitar que esse olhar pode vir de alguém que se encontra no mesmo lugar.

É cansativo ter que mostrar o que não são os olhos que devem enxergar. É um processo natural em ambos os sexos, mas que decidiu partido tomar e aos homens privilegiar e sob o olhar feminino um charme a mais ganhar. E é nesse mexe-mexe que se tenta acompanhar cada passada da idade sem tropeçar e sem deixar para trás, a identidade ficar, simplesmente, para os outros, tentar agradar.

Na verdade, todas as idades são sempre esperadas, com satisfação ou apreensão, não importa, porque não há como recusar. O jeito é aceitar para não vê-las passar sem nem sequer aproveitar. Todas as idades têm espaço para expectativas armazenar, mas têm algumas, que se destacam entre tantas, como as de décadas que fazem viajar do passado ao futuro em um piscar. Em algumas vezes fazem acelerar e em outras diminuir o passo na hora de completar. Quanto mais décadas, mais o que lembrar e menos programar para no presente mais poder estar. Embora longe de ser uma receita de bolo, acontece de não se dar conta da corrida dos dias passar. Emperra-se em algum obstáculo, fecha-se os olhos, quando não deveria, corta ou para no meio do caminho e deixa a nova idade avançar para tentar tudo recomeçar.

Recomeça nos 30, 40, 50 e, de repente, 60. Na adolescência, a crise existencial tem o peso dos anos para ser programado. Na maturidade, é o inverso. É nos 60 que você constata que já viveu mais do que viverá. É nos 60 que você muitas vezes resolve minimizar o passado, finalmente enxergar e viver intensamente o presente e deixar o futuro por conta do que será. É nos 60 que muitos decidem apenas colher o que plantou e outros continuam plantando e colhendo. É nos sessenta que muitos resolvem virar a vida junto com a virada da idade e optar por qualidade ao invés de quantidade. A escolha, assim como o ano novo, é pessoal e intransferível. Então, se já chegou até lá, por que não aproveitar?

Nada melhor do que uma corrida para clarear o horizonte, mesmo que o tempo, no meio do caminho, também queira participar, fechar e começar a chover só para lembrar que muitas vezes os planos podem sofrer interferências, quando menos esperar.

Os 10km previstos não passaram da metade, mas foi tempo suficiente para dar boas-vindas aos 60, refletir e constatar que a corrida, simplesmente, vai continuar e o que vai mudar dependerá de qual caminho traçar.

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Comments

  1. Cristina says:

    Virginia querida, parabéns pelo 60 e pela coragem da mudança de vida. Estou por aqui torcendo para tudo dar certo. Belo texto! Bjs com muito afeto.

    • Virginia Prado says:

      O difícil é decidir encarar. Depois é aproveitar porque cada estação tem sempre algo a mostrar ou ensinar.

  2. Maria Lucia Azeredo Murta da Fonseca says:

    Você sempre me surpreendendo!!! Cada reflexão melhor do que a outra! Cada virada de década,aqui, é bem vinda. A outra opção, seria não estar mais por este mundo. Rssss beijo Saudade

  3. verena says:

    Adorei o texto. Inteligente e bem humorado. Achei o máximo a pergunta de sua neta procurando o Ano Novo. Mudar do nove para o zero é sempre complicado, mas o que é importante é se ter o espírito jovem. Parabéns!

    • Virginia Prado says:

      Obrigada, Verena! As crianças estão sempre nos surpreendendo e inspirando. Verdade! O que vem de dentro é que tem valor.

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