O caminho da Cruz à Páscoa

Agonie a primeira pedra do Chemin de Croix (1)

Imaginando estar na contramão do clima de final de semana prolongado de Páscoa, sai de casa quase que me empurrando escada abaixo. Bateu saudade passar a data longe dos filhos e netos. Situação previsível e esperada, desde o momento que tomei a decisão de viajar para a França, me reencontrar e recomeçar.
Mas, foi só descer a rua em direção ao Porto para ser contagiada pela alegria. Em um primeiro momento, pensei estar fazendo confusão com os dias da semana. Achei que era quarta-feira de Grand Marché. Era mesmo uma feira, mas, de Páscoa, na qual os comerciantes da cidade aproveitam os três dias para dar boas-vindas à Primavera. Eles promovem uma grande liquidação de Inverno em barracas espalhadas por toda a orla de Sanary-sur-Mer.

Segurei a tentação de ficar ali, apreciando a movimentação. Já é visível o aumento de turistas, se comparado aos primeiros três meses do ano. É uma pequena amostra do que será a próxima temporada de verão. Cafés lotados, com direito a música de qualidade. Era ele de novo, Aaron Lordson, o cantor, que me encantou nos meus primeiros dias de Sanary. Com seu vozeirão, em um cantinho da praça, dava um toque especial ao evento. Segui em frente. Seria um percurso rápido, caminhando o suficiente, para espantar a preguiça.

Aaron Lobson o cantor
Aaron Lordson o cantor

Percorrendo o Chemin de Croix em plena Páscoa

Por diversas vezes, subi as escadas da Montée des Oratoires em direção à Portissol. Parei para observar e fotografar a vista, porém, sem me preocupar em fazer o registro do Chemin de Croix , que simboliza a devoção dos pescadores e habitantes à Notre Dame de Pitié.
O trajeto, de cerca de 1km, da Igreja de Saint Nazaire até a Chapelle de Notre Dame de Pitié*, que recebe habitualmente um grande número de turistas. Por meio de pinturas em lápides, o caminho, que também abriga quatro das 16 oratórias espalhadas pela cidade, conta os passos de Jesus até a ressurreição.
Assim que comecei meu trajeto na primeira pedra, a Agonia, tive a sensação de que, talvez, não tenha sido por acaso a escolha do caminho.
Parti em direção à segunda pedra, o Beijo de Judas, na rue de la Prud’Homme. Em cada uma das lápides, procurava interpretar as mensagens fazendo uma associação com a vida, de uma forma geral. Comecei a achar interessante esse exercício de reflexão, inspirado pelo caminho.

No terceiro monumento, na esquina da Quai Charles de Gaulle com Traverse Pierre Sorel, novamente na feira e mais uma tentação de desviar de meus objetivos. Atravessei e segui confiante, sem perceber ter pulado a quarta pedra. Ficaria para recuperar na volta. Já estava diante da Coroação de Espinhos.
Por esse curto e florido trajeto de subida com algumas escadas, acompanhei o calvário de Cristo do transporte da cruz à crucificação. No meio do caminho, a terceira tentação de parar, sentar, em um dos bancos de um pequeno largo, e, simplesmente, apreciar a vista. Um local, certamente, onde muitos desistem de continuar. Mas, a pedra da ressurreição e a capela estavam logo a frente.
A Chapelle de Notre Dame de Pitié, pequena, simples, e aconchegante, tem em seu interior a comprovação da devoção dos fiéis, demonstrada em placas de agradecimentos espalhadas nas paredes. No me

Chapelle Notre Dame de Pitié Santa Rita
Chapelle Notre Dame de Pitié Santa Rita

io de muitas dedicadas a Notre Dame de Pitié, algumas destinadas à Santa Rita, que também está representada por uma imagem em lugar de destaque. Santa Rita me lembra a infância, a imagem recebida da minha mãe preta para me proteger e que até hoje me acompanha. Santa Rita me lembra minha avó, minha sogra, batizado de filhos. Santa Rita, apesar de italiana, me lembra o Brasil. Eu não sei precisar quando tempo permaneci no interior da capela, mergulhada nas minhas lembranças.
Era para ser fim do percurso de ida, mas, a escada, que apelidei de penitência, estava logo adiante. Uma tentação irresistível para quem busca preparo físico. Subi e desci três vezes os 115 degraus. Agora, sim, me sentia menos em dívida rumo à maratona. Era hora de correr para entrar no ritmo, desta vez, de fête des Pâques**! Só me dei conta de ter esquecido de resgatar a quarta pedra, a flagelação, quando comecei a escrever. Talvez, um ato proposital, embora, inconsciente.

Um pouco de História

* Chapelle Notre Dame de Pitié (1560) – Situada no alto da colina de Portissol, é dedicada a Virgem Maria e sempre teve uma especial devoção, principalmente, de pescadores. Faz parte da sua história, ter tido sua guarda e manutenção confiada a um eremita com a função de monitorar o mar para a população que vivia, especialmente, da pesca e tinha como ameaças o mau tempo e as invasões bárbaras. Em caso de perigo, o eremita sinalizava com um fogo visível ao longe, tocava o sino e içava uma bandeira. Nos arquivos, constam 10 nomes de eremitas, entre eles, Jules Hornet, que guardou por mais de 35 anos a capela. Através dos séculos, Notre Dame de Pitié experimentou diferentes funções. Em 1720, durante a epidemia de peste, serviu de enfermaria. Na Revolução Francesa (1789 a 1799), foi posto de guarda. As antigas oferendas desapareceram. A rampa do altar e o sino foram removidos e derretidos e o terreno no entorno, vendido para saldar dívidas do município. A capela, que habitualmente recebe um grande número de turistas e devotos, voltou a ser dedicada ao culto em 1805 e tornou-se propriedade da cidade em 1909. (fonte:Le Patrimoine sacra – 500 Ans D’Histoire/ Office de Tourisme-Sanary-sur-Mer)

Curiosidade

**Na França, diferentemente do Brasil, a sexta-feira santa é um dia normal. Seguindo uma tradição cristã, que vem sendo passada por gerações, o feriado acontece um dia após a Ressurreição de Cristo. É a Lundi des Pâques, o dia que significa o início de novos tempos e que as famílias aproveitam para confraternizar e celebrar. O prato típico do dia de Páscoa francês é o cordeiro e a tradicional caça aos ovos é a atividade lúdica aguardada pela criançada.

 

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