Corrida guiada por aromas e cores de uma Ville Fleurie

Jardineiras nas calçadas

A corrida para o recomeçar muitas vezes esbarra em contratempos pessoais, profissionais ou de saúde. O jeito é contornar o problema, sem perder o ritmo ou, o que é mais importante, a motivação.  O trabalho por fazer ainda era muito, mas, uma escapada, rápida, para tirar o mofo e desenferrujar as articulações, depois de alguns dias em casa, era necessária. Eu precisava correr.

Assim que dei a largada, conhecia exatamente as primeiras reações. O corpo sem querer entrar no ritmo e a mente jogando contra minha vontade de seguir em frente. Como é difícil até pequenos recomeços. Era inevitável não pensar ser ainda mais difícil o começo, para quem não conhece o que vem depois. Talvez, o maior motivo de tantas desistências, sem sequer começar de fato.

Em poucas passadas, consegui provocar um turbilhão de pensamentos. Estava sentindo falta disso. Eu sabia que era questão de minutos, pois à medida que o corpo aquece e a mente entra em sintonia, eu me interiorizo, reflito ou, simplesmente, aprecio a paisagem por onde passo correndo.

Sem o compromisso da quilometragem X tempo, me empolguei com o diferente colorido que a primavera espalha por Sanary-sur-Mer, uma cidade, que assim como as estações, muda sua rotina e o universo de seus habitantes.

Logo me veio a lembrança de uma das primeiras placas que registrei assim que cheguei na cidade. A placa dizia: Ville Fleurie. A medida que encontrava essa mesma placa espalhada por diferentes percursos, inclusive nas cidades vizinhas (Six Fours Les Plages, Bandol, Ollioules e La Seyne sur Mer), aumentava a minha curiosidade.

Esse rótulo, que a cidade e seus habitantes mostram com orgulho, é o reconhecimento de um desenvolvimento de um ambiente para a qualidade de vida dos moradores e acolhida dos turistas, baseado em vários critérios feito pelo Conseil National des Villes et Villages Fleuris/CNVVF.

Basta caminhar por uma dessas cidades e ver a preocupação e o cuidado em manter espaços públicos e privados para ter a comprovação visual. É um detalhe na varanda, na parede, no jardim, na calçada, na praia até mesmo nas estradas, que tornam o ambiente perfumado e um colírio para os olhos.

Sem um rumo definido, deixei que as flores fossem me conduzindo pelos bairros de Portissol em direção a Bandol, e, assim, fui tendo a oportunidade de conhecer impasses, chemins e allées. Nessa altura, com o corpo já aquecido, a corrida já era só prazer. As paradas para registros das flores eram rápidas para enganar a mente e as pernas.

ciclista no percurso
ciclista no percurso

Mas, ser solicitada para dar uma informação não é uma oportunidade que aparece a todo momento. E, pela primeira vez, resolvi encarar o desafio, ao invés do famoso “je suis désolée”. Se o ciclista entendeu a explicação, jamais vou saber. Ele agradeceu e partiu. Apesar de tentar ser rápida, só tive tempo de fazer o registro, quando já quase desaparecia do quadro em foco.

Voltei a correr e constatei com alegria que os rond-points conspiram a meu favor. Todos os erros no trajeto sempre me levam a descobertas de locais muito acima da minha expectativa inicial de corrida.

Mais uma vez, não foi diferente. Por cima de um muro, uma vista linda de Bandol me despertou atenção. Desviei o caminho e, no final da Allée du Ressac, a surpresa de mais uma trilha no litoral que levaria até a praia de Beaucours. Um cantinho florido que compunha com o mar uma paisagem digna de pintura e que inspirava a viajar pela beleza do percurso. A tentação era enorme, porém, uma placa mais adiante alertava sobre a interdição do acesso.

Estava em Beaucours e o ciclista tinha me despertado o desejo de conversar, ou melhor, tentar conversar, em francês, foi o que percebi ao avistar um senhor do outro lado da calçada, checando sua caixa postal. O ato de atravessar a rua, para me responder, era o sinal verde que precisava. Perguntei sobre a praia, o bairro e falei um pouco sobre meus objetivos da temporada na França. Ele, talvez, percebendo a minha vontade de conversar, deixou fluir.  Apesar de querer muito continuar o papo, preferi não abusar da gentileza e do desaquecimento do meu corpo.  Me despedi satisfeita da façanha e resolvi inventar.

Em um dia de muitas primeiras vezes, molhar as mãos e sentir a temperatura da água do mar Mediterrâneo, seria mais uma. Embora, sem intenção, os pés também entraram no pacote, surpreendidos por uma onda.  Com o tênis encharcado e pesado, mas, cabeça e corpo leves, prossegui fiel ao caminho das flores, mas, no sentido de volta para casa.

Minha mão no mar Mediterrâneo (Plage Beaucours)
Minha mão no mar Mediterrâneo (Plage Beaucours)

Pelo trajeto, um camping, possíveis trilhas e uma certeza de que, em Sanary, minhas corridas não conhecem a monotonia.

As inúmeras paradas podem dar a sensação de não ter sido uma corrida. Mas, não tenho dúvidas. Foi uma espécie de fartlek próprio, que fez muito bem para o corpo, e, principalmente, para a mente.

A atividade, no trajeto do Port Sanary até Beaucours, durou cerca de 1h40 e incluiu rápidas paradas, alternando ritmos em trechos de subidas, descidas e escadas.

A minha corrida, inicialmente, sem pretensões, acabou se transformando em mais um dia inesquecível em Sanary-sur-Mer e em um desejo de que mais pessoas, principalmente corredores e caminhantes, tenham a oportunidade de conhecer e criar percursos na região, que parecem existir para nos surpreender.

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